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ARTIGO – “Em tempos de embustes universais, dizer a verdade se torna um ato revolucionário.” George Orwell (1903-1950)

20 de junho de 2017

* Dr. Flavio A. D. Zambrone, 20/06/2017

No dia 14 de junho de 2017 a Reuters, maior agencia de notícias do mundo, publicou uma matéria investigativa denominada “A batalha do glifosato”. A autora do artigo, Kate Kelland, é uma respeitada correspondente de Ciência e Saúde e já recebeu vários prêmios por seu trabalho, destacando-se entre eles o “Winner, Medical Journalists Association Feature of the Year Award 2016”.

Em seu artigo Kate relata a investigação realizada pela Reuters sobre a reunião da Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC), que em março de 2015 juntou 17 especialistas para reavaliar a segurança do herbicida glifosato. Após uma semana de discussões a agencia concluiu que o glifosato seria “provavelmente carcinogênico para humanos”. Sua decisão foi justificada por “evidencias limitadas da carcinogenicidade em humanos” e “evidencias suficientes da carcinogenicidade em animais de experimentação”.

O artigo publicado pela Reuters está centrado em uma figura chave: Aaron Blair, um epidemiologista do US National Cancer Institute (NCI), que também foi o presidente do painel realizado pela IARC. Mesmo sendo o presidente do painel, Blair reteve dados de um grande estudo que estabelecia firmemente que não havia conexão entre glifosato e câncer.

Mas que trabalho seria este? Um dos maiores e mais respeitados estudos que examinam os efeitos dos praguicidas na vida real, o Agricultural Health Study (AHS) elaborado por cientistas do US National Cancer Institute (NCI), incluindo o próprio Aaron Blair! O estudo acompanha 89 mil trabalhadores rurais desde o início dos anos 90 já coletou e analisou informação detalhada sobre a saúde dos participantes e suas famílias e o uso que fazem de praguicidas, incluindo o glifosato.

E por que este trabalho não foi considerado pela IARC? Porque de acordo com as regras da agência, apenas trabalhos publicados em revistas científicas podem ser considerados. Isto foi aparentemente para evitar a segurança estabelecida pelos estudos GLP (Good Laboratory Practice – a mais alta qualidade) que foram utilizados por órgãos como a EPA, mas nunca publicados em revistas.

É aí que as coisas ficam estranhas, especialmente porque pode ser que a não publicação de Blair de seu próprio trabalho tenha sido intencional.

No início de 2013 Aaron Blair e outros pesquisadores começaram a preparar papers sobre a relação do linfoma não-Hodgkin com glifosato e outros praguicidas, documentos estes nunca publicados.

Em 2014 uma revisão dos papers foi publicada em uma revista chamada PLos One, porem ela não incluía os dados sobre o glifosato, algo incomum. Ainda em 2014 um dos coautores do estudo, Michael Alavanja, enviou um e-mail a outro pesquisador da AHS, com cópia para Blair, frisando que “seria irresponsável não publicar os resultados dos estudos da AHS que estavam relacionados aos linfomas não-Hodgkin a tempo de serem levados em consideração pela reavaliação da IARC”.

O atraso da publicação recentemente tornou-se uma questão-chave em um processo no qual o estado americano da Califórnia acusa a empresa criadora do glifosato, a Monsanto, de não informar o público sobre o risco do produto. Em sua defesa, a empresa questionou Blair sobre por que seu trabalho, que não mostrou nenhuma conexão entre o glifosato e qualquer câncer, não foi tornado público. Sua resposta não foi nada convincente: “Nós decidimos removê-lo porquê … você não poderia colocar tudo em um único paper”.

Questionado novamente pela Reuters, Blair reafirmou que os drafts originais nunca foram publicados pois “continham demasiada informação para caber em um paper”. Por sua vez, o NCI também justificou a não publicação por “limitações de espaço”.

Ainda é incerto se os dados do estudo da AHS serão publicados a tempo de serem considerados, apesar do próprio Blair ter dito que esta publicação é importante. Laura Freeman, pesquisadora responsável pelo estudo da AHS, disse que espera que um manuscrito sobre o tema seja enviado para uma revista científica nos próximos meses.

A Reuters contatou dois especialistas independentes para dar sua opinião sobre o estudo da AHS. David Spiegelhalter, professor de Public Understanding of Risk da Universidade de Cambridge e Bob Tarone, um estatístico aposentado que trabalhou 28 anos no NCI. Os dois afirmaram que aparentemente não há razão ou evidencia científica que justifique a não publicação do estudo da AHS.

Ambos também apontaram que os drafts dos estudos escritos por Blair e outros cientistas em 2013 não possuem evidencias da relação de qualquer um dos herbicidas com os linfomas não-Hodgkin. Spiegehalter ressalta ainda que o estudo é forte do ponto de vista estatístico, mostrando a relação entre outros praguicidas e a doença, e que se esta relação com o glifosato também existisse deveria ter aparecido.

Embora o propósito declarado da reunião da IARC tenha sido determinar o potencial carcinogênico do glifosato, a agência pode ter excluído seletivamente dados, de acordo com relatório investigativo da Reuters, o que resultou em um posicionamento final diferente daquele das principais agências reguladoras do mundo – EPA, EFSA, as agencias canadense, japonesa e neozelandesa.

Durante audiência na Califórnia em março de 2017, Blair respondeu positivamente quando questionado se as informações não publicadas do estudo da AHS fariam com que a revisão da IARC tivesse um resultado diferente.

Esta não é a primeira vez que a ética do IARC, que está sob os auspícios da Organização Mundial de Saúde (OMS), é questionada. Entre os comentários mais espinhosos, está o fato de que em 2015 da agência afirmou que a salsicha era tão cancerígena quanto os cigarros.

O que é especialmente estranho desta vez é que o chair do painel sobre o glifosato era Aaron Blair, um epidemiologista do US National Cancer Institute e chefe de um grupo que havia conduzido anos de extensa pesquisa que indicavam resultados diferentes da conclusão do painel da IARC. No entanto, o painel nunca ouviu nada sobre o trabalho de Blair.

Ingênuo acreditar que o presidente de um importante painel deixou de fora um estudo fundamental, que teria mudado a classificação do produto, porque não tinha “espaço suficiente? ”. Se as descobertas de Blair fossem consideradas pelo painel do IARC, os resultados seriam inquestionavelmente diferentes.

Não se sabe o que realmente aconteceu durante esse período. Teria Blair intencionalmente deixado de lado importantes dados de segurança sobre o glifosato?  E, em caso afirmativo, por quê? As respostas completas podem nunca ser conhecidas, mas esta história simplesmente não cheira bem. Não se sabe se quando os resultados forem finalmente publicados a agência reclassificará o glifosato. Entretanto, um grupo que coloca salsichas e cigarros na mesma categoria e exclui evidencias científicas, não inspira muita confiança.

Este texto foi escrito pelo Dr. Flavio A. D. Zambrone, MD, PhD
Toxicologista
Presidente do Instituto Brasileiro de Toxicologia (IBTox)

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